quarta-feira, 12 de março de 2014

Vamos Fazer Compras?



Em uma noite nebulosa de Julho, não há muito que fazer além de aproveitar o silêncio que age como um bailarino dançando livremente pelas ruas e avenidas, acompanhado da névoa, sua parceira de palco que completa o espetáculo cobrindo toda a cidade como um grande edredom de plumas ou algodão. Porém há aqueles responsáveis por garantir a execução do script. Em uma delegacia, dois oficiais conversam sobre um suspeito. Um suposto maníaco ou dependente de drogas.

- Sem chance Matias. Ele continua repetindo a mesma versão que falou na viatura, senhor.

- Certo... Essa história eu já ouvi. Parece que a gente só vai conseguir falar com ele melhor amanhã. Você já fez a consulta no sistema?

- Sim. Pelo menos ele não mentiu no nome. Não encontrei nenhum antecedente. Só fiquei curioso sobre como ele veio parar em uma cidade tão longe de onde mora.

- Rs... Sei lá Leandro. Esses usuários de crack são assim mesmo, aliás, você pediu pra ele relatar o ocorrido por escrito?

- Sim, ele escreveu uma “senhora carta”. Você vai entregar ela pra superintendência?

- Pra ser sincero, vou anexar uma cópia no boletim. O original eu vou mandar pra cima mesmo. Eles estão fazendo alguns estudos pra melhorar o tratamento com essa gente e querem muitas informações.

- Passa o documento ai que eu vou ler o que esse cara escreveu.

O delegado pega em mãos a carta redigida pelo suspeito que foi encontrado vagando em uma rua nas proximidades. Ele estava fora de si e fisicamente debilitado, além de dizer coisas sem nexo. Para as autoridades era apenas mais um caso envolvendo a terrível “epidemia” de crack que se alastra pelas cidades brasileiras, porém causou estranheza aos oficiais o fato do suposto usuário ter conseguido produzir um texto tão longo e rico em detalhes.

Segue abaixo a transcrição da carta:


...

Vocês podem me chamar de louco ou rir o quanto desejarem, porém esclareço que não uso nenhum tipo de droga e garanto que minhas faculdades mentais estão em perfeito estado. Sei que é difícil acreditar nos fatos irei narrar agora, mas foi exatamente isso que aconteceu e gostaria de tudo registrado, pois vai que aconteça com outra pessoa por ai e, nesse caso, tanto eu como ela teremos mais certeza de não estarmos delirando.
...

Tudo começou em uma fatídica noite de sexta. Eu estava cansado por mais um dia de trabalho e confesso que sentia uma enorme vontade de tomar banho e dormir por umas doze horas. O primeiro consegui sem problemas, mas estava ciente que só poderia me deitar mais tarde, pois precisava fazer algumas compras. Morar sozinho também tem suas desvantagens.

De início não notei nada estranho, até que algo no estacionamento do prédio me chamou a atenção. Quando me dirigia ao carro, percebi estar sendo observado por um homem. Ele carregava um daqueles carrinhos utilizados pelos condôminos para levar suas compras ao apartamento e o modo de se vestir não me deixou dúvidas quanto a ser um entregador; provavelmente de um destes mercadinhos de bairro. Não consegui ver o rosto dele com clareza porque seu boné estava com a aba abaixada e seu olhar se inclinava em direção ao chão. Deve ter feito isso de propósito. Era um semblante frio como de quem não possui sentimentos, exceto por um sorriso sádico camuflado na escuridão de seu rosto. Eu não costumo arredar o pé quando me sinto incomodado e logo perguntei o que ele desejava.

- Vim só trazer umas compras pro apartamento cento e dezenove, disse o homem com uma voz perturbadora.

- Cara, eu acho que tem um engano ai. O apartamento cento e dezenove é onde eu moro, e não me lembro de ter pedido compras, aliás, não conheço nenhum supermercado que faça entregas.

- Me desculpe então. Acho que deve ter sido confusão minha, mas você não nos conhece. É que eu mercado onde eu trabalho começou a funcionar faz pouco tempo. Ele fica aqui pertinho e se você quiser conferir... Não é defendendo meu emprego não, mas ele tem ótimos preços.

- Ah tá, podexa então. Quando eu tiver tempo dou uma passada lá. Obrigado pela dica.

Ele nem me respondeu. Apenas virou as costas e seguiu para o elevador de carga. Eu também não queria muita conversa e nem perguntei onde essa porcaria de mercado ficava. Só peguei meu carro e fui embora.
...

Era quase dez da noite e, apesar do horário, eu já me preparava para o caos que estava por vir. Dirigir pensando nas filas e na correria típica de início de mês se apresentava como um desafio ao cobrar perícia no volante enquanto a mente se deixava navegar como um barco em alto mar diante a tempestade iminente. Eles não se preocupam em tratar bem o cliente e só querem ganhar, ganhar e ganhar, não se dando ao luxo de disponibilizar funcionários em todas as cabinas de caixa ou de investir em um atendimento melhor e, infelizmente, era o sexto dia útil do mês... Um terror. Nisso observei o que parecia ser um galpão todo iluminado. Após olhar por mais tempo, concluí que era um supermercado e já logo o associei ao entregador que vi no estacionamento, além de me admirar com a velocidade da obra, pois há umas três semanas eu tinha passado naquela mesma avenida e a construção aparentava levar meses para ficar pronta. Ao ver que o estacionamento não estava muito cheio, resolvi conferir os supostos ótimos preços.


Não sei o que tinha lá, mas o lugar me encantou por ter uma boa decoração, ser bem claro e arejado; som ambiente e até cheiros indecifráveis. Apesar de haver muitas pessoas ali, o local era confortável e fez meu cansaço se esvair. Os preços então... Eram de arrepiar qualquer dona de casa ou jovem que vive sozinho e tenta fazer milagre com um salário que não é muito bom. As promoções valiam o corre corre e eu não pude resistir ao preço do contrafilé. Há tempos que eu não comia carne de primeira e me deu água na boca só de pensar em uns bifes sendo fritos na chapa. Em seguida, continuei minha compra sem me preocupar com o relógio. Admito que depois de uma ou duas horas, não sei, já estava se tornando maçante transitar pelos corredores e verificar gôndolas. Conforme o tempo ia passando, percebi que alguns clientes se comportavam de maneira estranha. Eu os via várias vezes em um mesmo corredor olhando sempre os mesmos produtos. Outros eu vi tirar as mercadorias do carrinho e depositá-las na prateleira. Tinha uns que passavam a sensação de estarem apenas passeando, mas como ali era um local de compras que exige muita pesquisa e observação, acabei achando normal e antes de me dirigir aos caixas, lembrei de pegar alguns pães. Isso me fez voltar à padaria onde tive que esperar uns minutos até a chegada do padeiro que me chamou de sortudo, pois o mercado já estava fechando e por pouco não fiquei sem os pãezinhos.

- Droga, esqueci das batatas! Pensei assim que recebi os pães.

Naquela hora eu estava de saco cheio em fazer compras e o que eu mais desejava era ir embora. Percebi que o ambiente agitado já estava tomado por um silêncio repressor, mas não sou do tipo que passa horas no mercado e vai embora arrependido por não comprar algo, ainda mais se tratando de saco de batatas congeladas. Eu fui buscá-las e fiquei irritado quando não encontrei o preço anunciado. Senti uma gota de suor escorrendo lentamente em meu rosto e o frio liberado pelo freezer, em oposição aos meus sentimentos, se mostrou convidativo a uma caminhada entre os corredores em busca de uma máquina registradora. Pode parecer meio sem noção isso, mas eu queria levar as batatas e não achei nenhum daqueles aparelhinhos. Eu rodei o mercado umas duas vezes no mínimo e depois resolvi conferir o valor direto no caixa... Foi ai que me dei conta do que realmente estava acontecendo. Não achei nenhum caixa funcionando e senti minha espinha gelar ao ver que a porta de entrada estava lacrada e que o local estava todo deserto. Fui até o SAC, banheiros, entrei nas salinhas e não encontrei ninguém. Depois fiquei um bom tempo acenando em frente às câmeras de vigilância sem obter resposta alguma e, para piorar as coisas, meu celular ficou fora de rede. Não sei o que se passava ali, mas comecei a pensar nas desculpas que daria aos seguranças e nos argumentos que usaria para me defender de um possível processo. Só sei que estava com medo.

Em um primeiro momento, procurei ajuda de todas as formas sendo até um pouco ousado ao entrar na padaria e no frigorífico, mas depois acabei pensando que seria melhor deixar rolar. Afinal de contas, é obrigação da empresa garantir a segurança dos clientes e se fiquei preso no supermercado, iria apenas documentar para depois enfiar um processo nestes filhos da puta. Eu pensei na grana preta que iria ganhar e isso me empolgou. Para aliviar o “estresse mental” causado pela situação, eu fui até a adega e peguei uma das garrafas de vinho mais cara que encontrei. Eu estava com o estômago vazio e também muito cansado. A bebida desceu como uma bomba e não levei muito tempo até encontrar uma daquelas cadeiras confortáveis que ficam em exposição na parte de “casa e jardim” para tirar um pequeno cochilo. Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar no meu celular. Novamente fora de rede, só que ele indicava ser um pouco mais das treze horas do sábado. Eu achei estranho porque já era pro mercado estar aberto. Não conheço nenhum estabelecimento do tipo que fecha aos sábados. Fiquei um pouco pensativo e decidi repetir todas as ações da sexta na esperança de ser resgatado por alguém, mas nada. Foi ai que senti uma baita fome e não pensei duas vezes em atacar os melhores produtos, coisas que jamais consumiria se tivesse que comprá-las através do meu salário irrisório. Fui direto aos mais caros. Salgados, doces, chocolates, suco e mais uma porrada de coisas, devidamente registrado no meu celular, pois já havia feito uma gravação na sexta e pretendia fazer uma espécie de diário em vídeo dessa experiência, tanto para usar no processo como para “bombar” na internet. Também não perdoei os artigos de esporte e lazer. Andei de bicicleta, joguei videogame, testei aqueles aparelhos de som no volume máximo, provei roupas esportivas. Naquele fim de semana eu transformei o mercado em um parque de diversões, mas procurei fazer isso de uma forma comportada a fim de evitar ser chamado de baderneiro ou aproveitador. Até o lixo e as latas de cerveja eu guardei em um sanito.

Admito que no fundo toda aquela diversão era apenas fachada em vista da insegurança e ansiedade resultantes do ocorrido. Meu celular já marcava quase onze horas da noite de domingo e estava confiante de que em pouco tempo chegariam os funcionários da manutenção para reabrir o estabelecimento. Passei a noite em claro esperando. Uma... Duas... Três horas da manhã. Cada minuto parecia uma eternidade e eu estava ofegante.

- Dane-se o mundo eu quero sair daqui, foi o que eu pensava.

Gravei alguns depoimentos enquanto aguardava e acabei caindo no sono não me lembro exatamente quando.

Recordo-me de ter ouvido alguns sons quando levantei desesperado. A primeira coisa que fiz foi olhar ao redor em busca de pessoas, mas não encontrei nada. Fui correndo em direção às portas de entrada que para minha surpresa estavam fechadas. Ouvi novamente aquele barulho que me fez voltar aos corredores em sua procura. Mais uma vez aquele som. Pensei que fosse um funcionário. Pensei que fosse uma pessoa qualquer. Pensei que fosse... Delírio. Eu me senti como um daqueles animais de testes lutando para escapar do labirinto. Estava amarrado pelas cordas do destino onde duas forças contrárias se revezavam entre a certeza de ser salvo e a desilusão repentina.

Mais uma vez ouvi o barulho, só que agora podia ver de onde ele vinha.

Por um momento em senti um vazio em minha mente. Uma sensação de paz e serenidade, como se estivesse a observar o mar na beira de uma praia deserta. Na real eu não estava pensando em quase nada. Isso durou apenas alguns segundos e no momento em que fui arremessado de volta àquela situação, comecei a ter certeza de que o martírio estava longe de acabar porque o barulho vinha do meu celular. Me apressei na esperança de ser uma ligação, mas era apenas o toque avisando que a bateria logo acabaria. Não havia rede e estava marcando nove horas da segunda.

- Isso só pode ser piada!

- O que está rolando nessa porra de lugar! Gritei.

- Só pode ser algum tipo de pegadinha isso, ou obra de um idiota psicótico!

Tomado pela raiva, fui até a parte de acessórios, peguei um pé de cabra e sai observado cada canto do mercado em busca de uma janela ou qualquer lugar por onde pudesse sair, mas até os banheiros estavam selados e não encontrei escadas no estabelecimento. Segui até as portas de entrada e tentei abri-las de todas as formas, porém sem sucesso. Inconformado, promovi o vandalismo em sua pior espécie quebrando garrafas, latas, inutilizando mercadorias, rasgando estofados, arremessando notebooks, entre outras coisas que traziam a tona meu lado mais selvagem e faziam circular em meu sangue uma mistura de ódio, tensão, soberba e prazer. Após o surto, sentei no chão com as pernas cruzadas e fiquei observando as portas de entrada por um longo período até recuperar meu fôlego; momento no qual peguei o pé de cabra na tentativa arrombá-las novamente. Repeti o ciclo várias vezes e todas foram infrutíferas. Quando já na tinha mais força e esperança, fui golpeado por uma pequena sonolência. Notei que as luzes estavam em meia fase e isso me fez pensar que a eletricidade logo acabaria, mas não senti medo e apenas trabalhei para registrar tudo antes que a bateria do meu celular acabasse.




Quais os próximos eventos retratados na carta?

Como será o futuro desse pobre rapaz?

Existe algo sobrenatural ou tudo não passa de uma grande armação?

Estas e outras perguntas serão respondidas na segunda parte do texto e posso antecipar que coisas muito atormentadoras estão prestes a acontecer. Porém para que o mergulho no abismo sombrio de nossa imaginação continue, é necessário que a fã page do Não Corra atinja a meta 50 curtidas no Facebook. Curta e acompanhe.
curta o nao corra no facebook

Nenhum comentário:

Postar um comentário